– Um conto de Jorge Luis Borges –
(Texto original em espanhol e versão em português. Audio livro em espanhol)
(Tradução: Sérgio Mendes)
— As proezas mais límpidas perdem seu brilho se não são cunhadas em palavras. Quero que cantes minha vitória e minha loa. Eu serei teu Eneias; tu serás meu Virgílio. És capaz de afrontar essa empresa, que tornará nós dois imortais?
— Sim, Rei — disse o poeta —. Eu sou o Ollan. Durante doze invernos cursei as disciplinas da métrica. Sei de cor as trezentas e sessenta fábulas que são a base da verdadeira poesia. Os ciclos de Ulster e de Munster estão nas cordas de minha harpa. As leis autorizam-me a esbanjar as vozes mais arcaicas do idioma e as mais complexas metáforas. Domino a escrita secreta que defende nossa arte do exame indiscreto do vulgo. Posso celebrar os amores, os abactos, as navegações, as guerras. Conheço as linhagens mitológicas de todas as dinastias da Irlanda. Possuo as virtudes das ervas, a astrologia judiciária, a matemática e o direito canônico. Derrotei meus rivais em certame público. Adestrei-me na sátira, que causa doenças de pele, inclusive lepra. Sei manejar a espada, como o provei em tua batalha. Ignoro apenas uma coisa: a de agradecer o dom que me concedes.
O Rei, que se cansava facilmente dos discursos longos e alheios, disse-lhe com alívio:
— Sei de sobejo essas coisas. Acabam de dizer-me que o rouxinol já cantou na Inglaterra. Quando passarem as chuvas e a neve, quando o rouxinol regressar de suas terras sulinas, recitarás tua loa diante da corte e diante do Colégio de Poetas. Dou-te um ano todo. Limarás cada letra e cada palavra. A recompensa, bem o sabes, não será indigna de meu real costume tampouco de tuas vigílias inspiradas.
— Rei, a melhor recompensa é ver teu rosto — disse o poeta, que era também cortesão.
Fez suas reverências e foi-se, já vislumbrando algum verso.
Cumprido o prazo, que foi de epidemias e rebeliões, apresentou o panegírico. Declamou-o com firmeza e segurança, sem sequer olhar o manuscrito. O Rei aprovava-o com a cabeça. Todos imitavam seu gesto, até os que estavam apinhados na porta e não decifravam uma só palavra. Ao final, o Rei falou.
— Aceito tua faina. É outra vitória. Atribuíste a cada vocábulo sua acepção genuína e a cada nome substantivo o epíteto que lhe deram os primeiros poetas. Em toda a loa não há uma só imagem que não tenham usado os clássicos. A guerra é o belo tecido de homens e a água da espada é o sangue. O mar tem seu deus e as nuvens predizem o porvir. Manejaste com destreza a rima, a aliteração, a assonância, as quantidades, os artifícios da douta retórica, a sábia aliteração dos metros. Se toda a literatura da Irlanda se perdesse — omen absit —, poderia ser reconstruída sem perda com a tua ode clássica. Trinta escribas vão transcrevê-la doze vezes.
Houve um silêncio profundo e prosseguiu:
— Tudo está bem e, sem dúvida, nada aconteceu. Nos pulsos o sangue não corre mais com pressa. As mãos não buscaram mais os arcos. Ninguém empalideceu. Ninguém proferiu um grito de batalha, ninguém peitou os Vikings. Ao fim de mais um ano aplaudiremos outra loa, poeta. Como sinal de nossa aprovação, toma este espelho que é de prata.
— Agradeço e entendo — disse o poeta.
As estrelas do céu retomaram sua senda luminosa. Outra vez o rouxinol cantou nas selvas saxãs, e o poeta voltou com seu códice, menos extenso que o anterior. Não o repetiu de cor; leu-o com insegurança perceptível, omitindo algumas passagens, como se ele mesmo não as entendesse completamente ou não as quisesse profanar. A página era singular. Não era uma descrição da batalha, era a batalha. Em sua desordem bélica, agitavam-se o Deus que é Três e é Uno, os numes pagãos da Irlanda e os que guerreariam, centenas de anos depois, no princípio da Edda Maior. A forma não era menos curiosa. Um substantivo singular podia reger um verbo no plural. As preposições eram alheias às normas comuns. A aspereza alternava-se com a doçura. As metáforas eram arbitrárias ou assim pareciam.
O Rei trocou algumas palavras com os homens de letras que o rodeavam e falou desta maneira:
— De tua primeira loa pude afirmar que era um resumo feliz do que se cantou na Irlanda. Esta supera todo o que veio antes e também o aniquila. Eleva, maravilha e deslumbra. Não a merecem os ignaros, mas, sim, os doutos, a minoria. Um cofre de marfim conservará o único exemplar. Da pluma que produziu obra tão eminente podemos esperar ainda uma obra mais excelsa.
Completou com um sorriso:
— Somos figuras de uma fábula e é justo recordar que nas fábulas realça-se o número três.
O poeta atreveu-se a murmurar:
— Os três dons do feiticeiro, as tríades e a indubitável Trindade.
O Rei prosseguiu:
— Como prenda de nossa aprovação, toma esta máscara de ouro.
— Agradeço e entendi — disse o poeta.
O aniversário voltou. As sentinelas do palácio observaram que o poeta não trazia manuscrito algum. Não sem estupor o Rei o observou; era quase outro. Algo, que não o tempo, havia enrugado e transformado seus traços. Os olhos pareciam olhar muito longe ou estar cegos. O poeta rogou ao Rei para dizer-lhe algumas palavras. Os escravos esvaziaram a sala.
— Não fizeste a ode? — perguntou o Rei.
— Sim — disse tristemente o poeta —. Antes Cristo Nosso Senhor mo tivesse proibido.
— Podes dizê-la?
— Não me atrevo.
— Dou-te a coragem que te faz falta — declarou o Rei.
O poeta disse o poema. Era apenas uma linha. Sem se animarem a pronunciá-la em voz alta, o poeta e seu Rei saborearam-na, como se fosse uma oração secreta ou uma blasfêmia. O Rei não estava menos maravilhado e menos desamparado que o outro. Ambos olharam-se, muito pálidos.
— Nos anos de minha juventude — disse o Rei — naveguei até o ocaso. Em uma ilha vi lebréus de ouro que matavam javalis de ouro. Em outra alimentamo-nos com a fragrância das maçãs mágicas. Em outra vi muralhas de fogo. Na mais longínqua de todas, um rio abobadado e alçado sulcava o céu e por suas águas iam peixes e barcos. Essas são maravilhas, mas que não podem ser comparadas a teu poema, que de algum modo as contém. Que bruxaria to deu?
— Ao amanhecer — disse o poeta — lembro-me de dizer algumas palavras que a princípio não entendi. Essas palavras são um poema. Senti que havia cometido um pecado, talvez aquele que o Espírito não perdoa.
— O que agora compartilhamos os dois — o Rei sussurrou —. O de ter conhecido a Beleza, que é um dom proibido aos homens. Agora nos cabe expiá-lo. Dei-te um espelho e uma máscara de ouro; eis o terceiro presente, que será o último.
Pôs-lhe na mão direita uma adaga.
Do poeta sabemos que se matou ao sair do palácio; do Rei, que é um mendigo que recorre os caminhos da Irlanda, que foi seu reino, que nunca repetiu o poema.
FIM
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Audio livro em espanhol:
El Espejo y la Máscara
(Texto original)
Librada la batalla de Clontarf, en la que fue humillado el noruego, el Alto Rey habló con el poeta y le dijo:
-Las proezas más claras pierden su lustre si no se las amoneda en palabras. Quiero que cantes mi victoria y mi loa. Yo seré Eneas; tú serás mi Virgilio. ¿ Te crees capaz de acometer esa empresa, que nos hará inmortales a los dos?
-Sí, Rey -dijo el poeta-. Yo soy el Ollan. Durante doce inviernos he cursado las disciplinas de la métrica. Sé de memoria las trescientas sesenta fábulas que son la base de la verdadera poesía. Los ciclos de Ulster y de Munster están en las cuerdas de mi arpa. Las leyes me autorizan a prodigar las voces más arcaicas del idioma y las más complejas metáforas. Domino la escritura secreta que defiende nuestro arte del indiscreto examen del vulgo. Puedo celebrar los amores, los abigeatos, las navegaciones, las guerras. Conozco los linajes mitológicos de todas las casas reales de Irlanda. Poseo las virtudes de las hierbas, la astrología judiciaria, las matemáticas y el derecho canónico. He derrotado en público certamen a mis rivales. Me he adiestrado en la sátira, que causa enfermedades de la piel, incluso la lepra. Sé manejar la espada, como lo probé en tu batalla. Sólo una cosa ignoro: la de agradecer el don que me haces.
El Rey, a quien lo fatigaban fácilmente los discursos largos y ajenos, le dijo con alivio:
-Sé harto bien esas cosas. Acaban de decirme que el ruiseñor ya cantó en Inglaterra. Cuando pasen las lluvias y las nieves, cuando regrese el ruiseñor de sus tierras del Sur, recitarás tu loa ante la corte y ante el Colegio de Poetas. Te dejo un año entero. Limarás cada letra y cada palabra. La recompensa, ya lo sabes, no será indigna de mi real costumbre ni de tus inspiradas vigilias-
-Rey, la mejor recompensa es ver tu rostro-dijo el poeta, que era también un cortesano.
Hizo sus reverencias y se fue, ya entreviendo algún verso.
Cumplido el plazo, que fue de epidemias y rebeliones, presentó el panegírico. Lo declamó con lenta seguridad, sin una ojeada al manuscrito. El Rey lo iba aprobando con la cabeza. Todos imitaban su gesto, hasta los que agolpados en las puertas, no descifraban una palabra. Al fin el Rey habló.
-Acepto tu labor. Es otra victoria. Has atribuido a cada vocablo su genuina acepción ya cada nombre sustantivo el epíteto que le dieron los primeros poetas. No hay en toda la loa una sola imagen que no hayan usado los clásicos. La guerra es el hermoso tejido de hombres y el agua de la espada es la sangre. El mar tiene su dios y las nubes predicen el porvenir. Has manejado con destreza la rima, la aliteración, la asonancia, las cantidades, los artificios de la docta retórica, la sabia alteración de los metros. Si se perdiera toda la literatura de Irlanda -omen absit- podría reconstruirse sin pérdida con tu clásica oda. Treinta escribas la van a transcribir dos veces.
Hubo un silencio y prosiguió.
-Todo está bien y sin embargo nada ha pasado. En los pulsos no corre más a prisa la sangre. Las manos no han buscado los arcos. Nadie ha palidecido. Nadie profirió un grito de batalla, nadie opuso el pecho a los vikings. Dentro del término de un año aplaudiremos otra loa, poeta. Como signo de nuestra aprobación, toma este espejo que es de plata.
-Doy gracias y comprendo -dijo el poeta. Las estrellas del cielo retornaron su claro derrotero. Otra vez cantó el ruiseñor en las selvas sajonas y el poeta retornó Con su códice, menos largo que el anterior. No lo repitió de memoria; lo leyó Con visible inseguridad, omitiendo ciertos pasajes, Como si él mismo no los entendiera del todo o no quisiera profanarlos. La página era extraña. No era una descripción de la batalla, era la batalla. En su desorden bélico se agitaban el Dios que es Tres y es Uno, los númenes paganos de Irlanda y los que guerrearían, centenares de años después, en el principio de la Edda Mayor. La forma no era menos curiosa. Un sustantivo singular podía regir un verbo plural. Las preposiciones eran ajenas a las normas Comunes. La aspereza alternaba Con la dulzura. Las metáforas eran arbitrarias o así lo parecían.
El Rey cambió unas pocas palabras Con los hombres de letras que lo rodeaban y habló de esta manera:
-De tu primera loa pude afirmar que era un feliz resumen de cuanto se ha cantado en Irlanda. Ésta supera todo lo anterior y también lo aniquila. Suspende, maravilla y deslumbra. No la merecerán los ignaros, pero sí los doctos, los menos. Un cofre de marfil será la custodia del único ejemplar. De la pluma que ha producido obra tan eminente podemos esperar todavía una obra más alta.
Agregó con una sonrisa: -Somos figuras de una fábula y es justo recordar que en las fábulas prima el número tres.
El poeta se atrevió a murmurar: -Los tres dones del hechicero, las tríadas y la indudable Trinidad. El Rey prosiguió: -Como prenda de nuestra aprobación, toma esta máscara de oro.
-Doy gracias y he entendido -dijo el poeta. El aniversario volvió. Los centinelas del palacio advirtieron que el poeta no traía un manuscrito. No sin estupor el Rey lo miró; casi era otro. Algo, que no era el tiempo, había surcado y transformado sus rasgos. Los ojos parecían mirar muy lejos o haber quedado ciegos. El poeta le rogó que hablara unas palabras con él. Los esclavos despejaron la cámara.
-¿No has ejecutado la oda? -preguntó el Rey; -Sí -dijo tristemente el poeta-. Ojalá Cristo Nuestro Señor me lo hubiera prohibido.
-¿Puedes repetirla?.: -No me atrevo.
-Yo te doy el valor que te hace falta -declaró el Rey.
El poeta dijo el poema. Era una sola línea. Sin animarse a pronunciarla en voz alta, el poeta y su Rey la paladearon, como si fuera una plegaria secreta o una blasfemia. El Rey no estaba menos maravillado y menos maltrecho que el otro. Ambos se miraron, muy pálidos.
-En los años de mi juventud -dijo el Rey- navegué hacia el ocaso. En una isla vi lebreles de plata que daban muerte a jabalíes de oro. En otra nos alimentamos con la fragancia de las manzanas mágicas. En otra vi murallas de fuego. En la más lejana de todas un río abovedado y pendiente surcaba el cielo y por sus aguas iban peces y barcos. Éstas son maravillas, pero no se comparan con tu poema, que de algún modo las encierra. ¿Qué hechicería te lo dio?
-En el alba -dijo el poeta- me recordé diciendo unas palabras que al principio no comprendí. Esas palabras son un poema. Sentí que había cometido un pecado, quizá el que no perdona el Espíritu.
-El que ahora compartimos los dos -el Rey musitó-. El de haber conocido la Belleza, que es un don vedado a los hombres. Ahora nos toca expiarlo. Te di un espejo y una máscara de oro; he aquí el tercer regalo que será el último.
Le puso en la diestra una daga. Del poeta sabemos que se dio muerte al salir del palacio; del Rey, que es un mendigo que recorre los caminos de Irlanda, que fue su reino, y que no ha repetido nunca el poema.
FIN
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Jorge Luis Borges, escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. (1899-1986).
O texto em espanhol que serviu de base para esta tradução foi retirado de El Libro de Arena, edição especial publicada pelo jornal argentino La Nación, em 2005, dentro da coleção Biblioteca Esencial.